Grande e barulhento, o japu do Juruena surpreendeu os pesquisadores (Foto: Bruno Rennó)

Grande e barulhento, o japu do Juruena surpreendeu os pesquisadores (Foto: Bruno Rennó)

 

Durante os trabalhos de campo para o desenvolvimento do guia de aves da Fazenda São Nicolau no ano passado, os ornitólogos Vitor Piacentini, João Pinho, Victor Castro e Tiago Ferreira se depararam com a oportunidade única de observar e coletar material sobre uma população de japu-de-capacete atípica. O primeiro encontro com a ave misteriosa ocorreu em janeiro de 2012 na região do rio Juruena, Norte de Mato Grosso, pelos também ornitólogos Bruno Rennó e Vitor Torga. Bruno e Vitor estavam fazendo um inventário de aves no Arco do Desmatamento para auxiliar na conservação das espécies quando se surpreenderam com centenas de japu-de-capacete (Cacicus oseryi) em um ninhal em uma fazenda de Cotriguaçu. Foi neste momento que surgiu a dúvida se essa seria uma nova espécie ou subespécie de ave. Afinal, essa população estava a 1.100 km do seu local de distribuição conhecido: o extremo Oeste da Amazônia. A dupla coletou material para comparações com as coleções de japu-de-capacete, mas, dada a similaridade entre as populações, era preciso reunir mais dados para análise.

Há seis anos, o ninhal identificado estava em uma embaúba localizada na beira de um pequeno igarapé no meio da floresta no Vale do Juruena. Para os pesquisadores, não fazia sentido encontrar uma população reprodutiva do japu numa região tão longe de sua distribuição geográfica conhecida até então e ainda separada desta pelo rio Madeira, uma grande barreira natural para o acesso da espécie à região. Bruno e Vitor fotografaram os indivíduos, gravaram o seu repertório vocal e capturaram uma fêmea para comparação direta com o material do japu-de-capacete, disponível em coleções científicas no Brasil e no mundo. Nos dias que seguiram, também procuraram por novos ninhais, mas sem sucesso.

Os pesquisadores se lançaram à missão de identificar, a partir das coleções, se essa seria uma nova espécie. Essa tarefa é árdua, pois existe uma grande variação morfológica entre as espécies e é necessário ter acesso a dados que extrapolem um indivíduo para afirmar uma distinção clara. “A maioria das pessoas que não têm formação na área normalmente esquece que espécie é população e não indivíduo. E a natureza é pródiga em produzir diversidade e variação, mesmo dentro de uma única espécie. Diferenças ligadas à idade, sexo e local de ocorrência de um indivíduo podem tornar a delimitação de uma espécie algo bastante difícil, por vezes até subjetivo”, explicou Vitor Piacentini. Essa primeira análise revelou que a fêmea capturada era levemente mais escura que os indivíduos do Oeste amazônico. Foram examinados 40 exemplares do japu-de-capacete preservados no Museu Paraense Emílio Goeldi (Belém), American Museum of Natural History (Nova Iorque), Field Museum of Natural History (Chicago) e Louisiana State University Museum of Zoology (Baton Rouge).

Além da coloração da plumagem, as gravações revelaram sutis diferenças do canto dos japus encontrados em Mato Grosso. Contudo, as amostras genéticas obtidas em Cotriguaçu apresentaram problemas e não permitiram avaliar se havia de fato distinções entre essas populações. Os descobridores do japu no Mato Grosso sabiam que seria necessário retornar a campo para ampliar a amostra e, quando seus colegas do Laboratório de Ecologia de Aves da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) foram convidados a participar do guia de aves, acharam os parceiros que precisavam para tentar identificar o japu do Juruena.

A São Nicolau é vizinha da fazenda em que o ninhal havia sido encontrado pela primeira vez e, em novembro de 2017, os ornitólogos da UFMT se juntaram ao pesquisador Everton Miranda, já hospedado na Fazenda, onde estava desenvolvendo os levantamentos em campo para a elaboração de sua tese de doutorado sobre harpias. O grupo seguiu as coordenadas levantadas pelos pesquisadores em 2012 na esperança de encontrar novamente a população. No local, o silêncio imperava e o ninhal não existia mais (as embaúbas estavam quebradas por causa de fortes ventos). Houve ainda tentativas de tocar a voz da espécie em playback para atrair o japu. Sem nenhuma resposta, os pesquisadores retornaram decepcionados à São Nicolau.

O grupo sabia que teria uma semana de campo pela frente e ainda poderia achar a espécie furtiva. A surpresa aconteceu quando Vitor Piacentini escutou o canto do japu entre a algazarra das centenas de aves que se reuniam no entardecer em duas grandes touceiras de bambus exóticos, atrás do refeitório da Fazenda. “Cerca de um minuto depois de começar a observar com cuidado, uma ave cruzou o céu acima de mim e pousou numa haste de bambu. Uma ave grande, avermelhada, com a cara escura e que me olhava com olhos branco-azulados. O misterioso japu do Juruena fora reencontrado!”, relatou Vitor Piacentini. O reencontro permitiu, então, que pudessem ser retomados os trabalhos de comparação com os espécimes do Oeste da Amazônia.

 

O japu é reencontrado atrás do refeitório da Fazenda São Nicolau (Foto: Victor Castro)

O japu é reencontrado atrás do refeitório da Fazenda São Nicolau (Foto: Victor Castro)

 

As observações que se seguiram confirmaram as diferenças de plumagem para a população do Oeste amazônico. Mas, como as distinções não são muito chamativas, é possível que essa seja uma subespécie. O número de gravações do canto ainda é pequeno para apoiar um resultado mais categórico. O pesquisador Bret Whitney, da Universidade de Louisiana (EUA), recentemente conseguiu gravar chamados de alguns indivíduos em Colniza, também no Norte de Mato Grosso, confirmando que a espécie ocorre ao menos entre os rios Aripuanã e Juruena.

De posse de novas amostras de material genético, o próximo passo dos pesquisadores será uma análise molecular em busca de identificar a variação existente. Ainda é cedo para afirmar se o japu do Juruena é uma nova subespécie ou espécie. A única certeza é que uma nova ave grande, barulhenta e colorida encantou os pesquisadores no Arco do Desmatamento.

A poeira da estrada de terra levantou inaugurando a última etapa da viagem rumo à Fazenda São Nicolau em Cotriguaçu. O professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e fotógrafo, Antonio Carlos de Freitas, já acumulava milhares de imagens de natureza em seu banco de imagens. Mas tudo era novidade na aventura que embarcou com o amigo e pesquisador da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Roberto Silveira. Antonio foi convidado para fotografar a fazenda da ONF Brasil no Noroeste Mato-grossense, território amazônico, para a revista francesa Terre Sauvage.

Do Rio de Janeiro (RJ) até Alta Floresta (MT), a viagem foi mais tranquila, apesar de longa e cansativa. No último trecho, foram 3h30 de carro em mais de 250 km de estrada, seguidas pela travessia do Rio Juruena por balsa e finalmente 7 km até a sede da Fazenda. “Saí do RJ às 6h da manhã e cheguei a Fazenda às 19h. Considerando-se o fuso horário, foram 14 horas de viagem”, recordou Antonio.

Na visita, há 8 anos, a acolhida ocorreu já com “o excelente almoço”, segundo Antonio, e a equipe foi hospedada em um casarão de madeira. “Eu lembro, nostalgicamente, do som da madeira rangendo em alguns cômodos do casarão.” No dia seguinte, o grupo saiu pela Fazenda, interagindo com os colaboradores locais, muito receptivos. Entre eles, o Gilberto Araújo, que plantou a primeira árvore na Fazenda. Antonio aproveitou a oportunidade de registrar o carinho do Gilberto pela planta.

 

Gilberto e a sua primeira árvore plantada na Fazenda (Foto: Antonio Carlos Freitas, 2008)

Gilberto e a sua primeira árvore plantada na Fazenda (Foto: Antonio Carlos Freitas, 2008)

 

Desde então, muita coisa mudou, gerando melhorias no espaço. Mas o cuidado e a dedicação da equipe da São Nicolau continuam perceptíveis. Antonio testemunhou as transformações em seu retorno no mês passado, em novembro. Desta vez foi convidado, também pelo amigo Roberto, para fotografar as aves da região e participar de uma equipe para a produção de um guia de aves, que pode interessar também aos observadores de aves da região. A expedição foi formada pelos pesquisadores da UFMT: Dr. Vítor de Queiroz Piacentini, Elton Pinho, Tiago Ferreira, Victor Castro e o Dr. João Batista Pinho, que coordenou a equipe.

 

Antonio participou com fotografias para o guia de aves da Fazenda São Nicolau (Foto: Antonio Carlos Freitas, 2008)

Antonio participou com fotografias, como essa da espécie Hylophylax punctulatus, para o guia de aves da Fazenda São Nicolau (Foto: Antonio Carlos Freitas, 2008)

A viagem até Alta Floresta não foi muito diferente da primeira vez. A não ser pela “modernidade” de uma esteira rolante para a entrega das bagagens, o aeroporto parecia parado no tempo. Como o grupo chegou à tarde ao aeroporto, saíram direto à Fazenda. Para a surpresa de Antonio, 90% dos 250 km da estrada estavam asfaltados. Isso fez uma grande diferença: a viagem foi muito mais confortável e rápida. Por outro lado, a balsa parecia ser a mesma, uma volta ao passado.

Na São Nicolau, o casarão de madeira não existe mais. Os visitantes foram alojados na casa de hospedes, feita de alvenaria e separada do escritório da ONF Brasil. Outra novidade foi ver que o auditório também não existe mais. As construções de madeira típicas da região não são imunes ao passar do tempo! Todas as instalações elétricas da Fazenda estão passando por reforma intensa neste ano, que verá nascer, além das renovações dos alojamentos, uma nova cozinha industrial e um novo auditório em 2018.

“O ritmo e a demanda dessa vez foram bem diferentes, mas de qualquer forma, era interessante rever os lugares vistos da última vez e inevitável fazer comparações”, explicou Antonio.

O fotógrafo constatou que as árvores, que anteriormente estavam em sua infância, agora já exibiam a robustez de “adultos” ou, pelo menos, de “adolescentes”. Um aspecto que não mudou foi a receptividade exemplar das pessoas envolvidas no projeto. A recepção no aeroporto foi realizada pelo Engenheiro Florestal Alan Bernardes, sempre disposto e solícito às questões levantadas na estrada e sempre de prontidão para paradas fotográficas.

Na fazenda, a acolhida do Gilberto e de sua esposa Alaide fez com que Antonio se sentisse em casa. Os “causos” vividos por Gilberto, uns dramáticos e outros pitorescos, sempre animam a conversa e poderiam render um livro. Outra companhia de destaque foi a do Roberto Eduardo Stofel, que vive no assentamento a aproximadamente uns 15 km da Fazenda. Ele se tornou o guia incansável da expedição, se fazendo presente em quase todas as atividades de campo, pela manhã e à tarde.

Na visita para as fotos da revista francesa, o Roberto Stofel morava com a sua família em uma casa humilde de madeira. Dessa vez, já era uma casa de alvenaria, ampla e confortável, com vários tipos de árvores plantadas no quintal. O bebê de colo da primeira viagem, agora já andava na garupa da moto do irmão. A vida também se transformou positivamente para eles, que souberam aproveitar as oportunidades do desenvolvimento sustentável da região.

Antonio acredita que o sucesso dos projetos da Fazenda é alcançado graças ao empenho de todos, desde a alta gerência até o funcionário mais humilde, sem o qual a gestão da Fazenda seria impossível. Após a segunda experiência na São Nicolau, o pesquisador fotógrafo expressou toda a sua gratidão. “Gostaria de deixar registrado o meu agradecimento as pessoas que confiaram no meu trabalho e me convidaram para essa campanha. A todos da Fazenda, desde a gerência até a moça que me ensinou a usar a máquina de lavar roupa, ultramoderna. Aos meus companheiros de pesquisa, com os quais aprendi muito, aos demais pesquisadores presentes na Fazenda, cada um com o seu propósito e assim por diante. Todos contribuíram de forma significativa para mais uma boa estadia e um bom trabalho de campo.”

 

Veja mais fotos do Antonio:

ACAF 2017-1282

O Engenheiro Alan Bernardes descansando na balsa depois de aproximadamente 3:30h de viagem – 2017.

 

Gilberto e uma visão ampla das plantações - 2008.

Gilberto e uma visão ampla das plantações – 2008.

 

Gilberto e a sua primeira árvore plantada na Fazenda – 2008.

Gilberto e a sua primeira árvore plantada na Fazenda – 2008.

 

Antiga casa do Roberto no assentamento – 2008.

Antiga casa do Roberto no assentamento – 2008.

 

Família do Roberto no assentamento – 2008.

Família do Roberto no assentamento – 2008.

 

Sr. Gilberto durante a travessia – 2017.

Sr. Gilberto durante a travessia – 2017.

 

Algumas fotos para o Guia de Aves da Fazenda – 2017:

Chloroceryle aenea (Antonio Carlos/PETRA)

Chloroceryle aenea (Antonio Carlos/PETRA)

 

Eurypyga helias (Antonio Carlos/PETRA)

Eurypyga helias (Antonio Carlos/PETRA)

 

Rhegmatorhina hoffmannsi (Antonio Carlos/PETRA)

Rhegmatorhina hoffmannsi (Antonio Carlos/PETRA)

 

Myiozetetes cayanensis (Antonio Carlos/PETRA)

Myiozetetes cayanensis (Antonio Carlos/PETRA)

 

Tachycineta albiventer (Antonio Carlos/PETRA)

Tachycineta albiventer (Antonio Carlos/PETRA)

 

Thamnomanes caesius (Antonio Carlos/PETRA)

Thamnomanes caesius (Antonio Carlos/PETRA)