Que as harpias estão perdendo habitat ao longo das florestas tropicais da América Central e do Sul é um fato bem conhecido. Mas qual a extensão e a distribuição dessa perda são assuntos que ainda não foram bem documentados pelos cientistas.

Essa demanda foi abordada em um estudo recente, publicado na revista internacional PLOS ONE, e os resultados são surpreendentes. O estudo foi desenvolvido por pesquisadores da Universidade Estadual de Mato Grosso (Unemat) de Alta Floresta, em colaboração com cientistas da UFMT, Israel, Inglaterra e Estados Unidos, e mostrou que a perda da distribuição da espécie já chega a mais de 40%. Determinado a aprender mais sobre a maior águia do mundo, Everton Miranda, especialista em predadores, notou que a distribuição das harpias vinha se reduzindo paulatinamente. Se nada for feito, é uma questão de tempo até que a distribuição da espécie esteja restrita somente à Amazônia.

 

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Harpia, também conhecida no Brasil como gavião-real, é a maior águia do mundo, chegando a 9kg de peso e 2,2m de envergadura. O animal é carnívoro e ocorre em florestas em bom estado de conservação. Foto: André Luiz Briso.

 

Dadas as dificuldades e custos de estimar apropriadamente a distribuição da espécie em tempo real, Miranda viu nas bases de dados dos passarinheiros – os observadores de aves – uma oportunidade para coletar dados sobre a distribuição dessa espécie elusiva. “Nós selecionamos as bases de dados dos observadores de aves, em particular o Wikiaves, como um caminho para estudar esse fenômeno, já que avistamentos da espécie são comuns em certas regiões onde ela ainda ocorre”, explica Everton Miranda. Os pesquisadores coletaram ainda dados sobre a presença de florestas e a densidade populacional humana de cada localidade onde os registros ocorreram. Naturalmente, baixas densidades populacionais e a presença de florestas foram os principais fatores determinando a chance de uma área ainda conter harpias. “Em áreas de baixa densidade populacional humana e grande cobertura florestal, nossos modelos indicam a presença de harpias” explica Miranda.

 

A harpia já perdeu 41% da sua distribuição, e do restante, 93% estão concentrados na Amazônia. Na Mata Atlântica, a Serra do Mar apresenta potencial para reintrodução.

A harpia já perdeu 41% da sua distribuição, e do restante, 93% estão concentrados na Amazônia. Na Mata Atlântica, a Serra do Mar apresenta potencial para reintrodução.

 

Essas áreas estão principalmente concentradas na Amazônia. Cerca de 93% da distribuição atual da harpia se encontra nessa região. Porém, o pesquisador explica que apesar de ser considerada uma extensa fortaleza da conservação, para as harpias, a Amazônia tem diversas fragilidades: “A região amazônica tem três problemas principais: a degradação de habitat pelo corte seletivo de madeira, que derruba as árvores gigantes que a harpia usa para construir seus ninhos; as terras indígenas, que cobrem 27% da região, onde as harpias são capturadas e mortas para o uso de suas penas”. Para piorar, há a expansão do desmatamento no sul e sudeste da Amazônia: “Na região do Arco do Desmatamento, além das duas ameaças já mencionadas, a floresta está constantemente sendo carbonizada para dar espaço ao pasto. As harpias já desapareceram da maior parte dessa região” completa o pesquisador. Os outros 7% da distribuição das harpias estão divididos em outras regiões, como a América Central, alguns enclaves florestais no Cerrado, e a Mata Atlântica.

Agora, os pesquisadores estão começando a propor soluções criativas para o problema “Uma área do estado de São Paulo, na serra do mar, ainda contém grandes extensões florestais dentro dos parques. Nessa área, já não há registro de harpias há muitos anos, embora ainda haja abundância das suas presas”, explica Miranda. “Esse espaço representa a possibilidade de reintrodução da espécie nessa região”.

 

No estudo também participaram Jorge F. S Menezes, Camila C. L. Farias, Charles Munn e Carlos A. Peres

Referência:

Miranda, E. B. P., Menezes, J. F., Farias, C. C., Munn, C., & Peres, C. A. (2019). Species distribution modeling reveals strongholds and potential reintroduction areas for the world’s largest eagle. PloS one, 14(5), e0216323.

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Filhote de harpia registrado por foto de celular (Foto: Acervo do projeto “Construindo uma estratégia para a conservação da harpia na Amazônia”)

Os pesquisadores do projeto “Construindo uma estratégia para a conservação da harpia na Amazônia” monitoram atualmente sete ninhos de harpias no Arco do Desmatamento. A região Amazônica é o último refúgio da ave, ameaçada devido à perda de seu habitat natural com o desmatamento e ao abate das harpias em retaliação a predação de animais domésticos. O grupo de estudiosos, liderado pelo mestre em Ecologia e Conservação da Biodiversidade Everton Miranda, instala duas câmeras fotográficas em cada ninho encontrado para monitorar o comportamento das harpias e propor estratégias para defender a espécie.

Os sete pontos atuais de observação se localizam nos municípios mato-grossenses de Cotriguaçu, Parnaíta e Juruena. Os equipamentos nos ninhos de Aripuanã, Nova Bandeirantes e Apiacás foram removidos, resultando em mais de cinco mil fotos para análise dos hábitos da águia. Até o momento, as harpias não apresentaram nenhuma reação negativa às câmeras, como abandonar o ninho devido às atividades do projeto. Não houve mal funcionamento dos equipamentos fotográficos instalados e a taxa de descoberta de ninhos pela equipe é a maior entre os grupos de pesquisa sobre o tema.

Nem mesmo o ataque eventual da águia, protegendo o seu filhote, desanimou os estudiosos. O Everton sofreu a investida de uma harpia quando subia a árvore do ninho e pôde se defender ao firmar a perna na corda de escalada, se posicionando de frente para a ave. No último instante e a poucos metros de distância, a águia, que se aproximava com alta velocidade, desviou do alvo e pousou em um galho a quatro metros da cabeça do pesquisador. Quando Everton estava no chão, a ave também atacou o escalador profissional que acompanha as ações do projeto, Roberto Stofel.

A subida na árvore, no entanto, foi necessária para detectar a exata fase do ciclo reprodutivo do casal de harpias. Afinal, o projeto não introduz câmeras durante a reconstrução de ninhos ou em ninhos com ovos – o filhote deve ter mais de 15 dias de vida para a instalação do equipamento.

 

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A águia em diferentes poses capturadas pelas câmeras instaladas pelos pesquisadores (Foto: Acervo do projeto “Construindo uma estratégia para a conservação da harpia na Amazônia”)

 

Outro desafio que os pesquisadores enfrentam cotidianamente é a ação dos moradores locais. Os produtores rurais ameaçam as harpias, pois estas aves podem se tornar predadores de animais domésticos em áreas nas quais a floresta foi removida. Em 2016, o projeto realizou extensas entrevistas sobre a predação de animais domésticos e as análises poderão identificar ações para prevenir os ataques por parte das águias. Existe a intenção de, por exemplo, indenizar os produtores por aves, leitões, cães, e gatos mortos pelas harpias.

A promoção do turismo de observação de aves é uma outra estratégia para valorizar as águias, inclusive com retornos financeiros para os moradores locais. O projeto iniciou a articulação com uma importante empresa de turismo para a implantação de torres de observação de ninhos da harpia. O turismo responsável e cuidadosamente regulado deve contribuir para a conservação da espécie. A proposta é que, através da empresa, o turista pague uma taxa diária para o dono da propriedade, gerando empregos verdes na região e integrando a floresta preservada às economias locais.

No trabalho de procura dos ninhos, os principais aliados são os coletores de castanhas, que tiram o sustento da floresta. Em diversas ocasiões, eles encontram ninhos em castanheiras e mostram para os pesquisadores, recebendo a recompensa de 500 reais. O valor é a principal motivação para qualquer pessoa que trabalha no habitat da harpia entrar em contato com o projeto.

As atividades recebem patrocínio da ONF Brasil, Idea Wild, Rainforest Biodiversity Group, The Explorer’s Club, Rufford Small Grants e Mohamed Bin El Zayed Species Conservation Fund.