O padrão de cores da nova espécie é atípico (Foto: Bernarde, Turci, Abegg e Franco)

O padrão de cores da nova espécie é atípico (Foto: Bernarde, Turci, Abegg e Franco)

 

A descoberta foi uma surpresa e ocorreu graças ao inventário da herpetofauna de 2011, que fez o levantamento dos anfíbios e dos répteis na Fazenda São Nicolau. O animal foi encontrado nas proximidades da parcela 1 do Programa de Pesquisa em Biodiversidade (PPBio), localizado na área de floresta nativa da São Nicolau e não se enquadrava em nenhuma espécie conhecida.

Essa espécie inédita, a Micrurus boicora, possui um padrão de cores distinto com apenas cinco tríades separadas por faixas castanhas ou amareladas, além de número pequeno de escamas ventrais e subcaudais. A quantidade de tríades e escamas a separa de outras espécies, como a Micrurus hemprichii e a Micrurus ortoni.

O exemplar coletado e não identificado em 2011 foi enviado à especialistas do Instituto Butantan para que ajudassem a equipe da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), coordenada pelo professor Dr. Domingos Rodrigues, membro do Comitê Científico e Técnico do Projeto Poço de Carbono Florestal Peugeot-ONF, na identificação do exemplar. Depois de aproximadamente dois anos de análises foi possível categorizar a Micrurus boicora como uma espécie nova para a ciência. A escolha do nome foi uma alusão ao nome “Boicorá” de origem Tupi-Guarani. A palavra é comumente usada pelos indígenas e populações tradicionais para as serpentes coral.

Sobre a pesquisa realizada, Domingos destacou a importância “da ocorrência da serpente na área florestada da Fazenda, fato que supõe que a espécie estará protegida devido à manutenção da floresta nesse local”.

Os impactos para a Fazenda dessa descoberta serão inúmeros. “A nova espécie é um coral verdadeira com potencial para estudos de bioprospecção (sobre propriedades de seus venenos) e também para o ecoturismo, visto que a espécie é rara e ocorre na zona de endemismo Rondônia, região que compreende o noroeste de Mato Grosso e parte de Rondônia”, completa Domingos.

As informações sobre a Micrurus boicora foram divulgadas por pesquisadores da Universidade Federal do Acre (UFAC) e do Instituto Butantan em um artigo científico. O achado abre novas perspectivas de pesquisas complementares para estudar o comportamento e a biologia reprodutiva dessa serpente, entre outros aspectos ecológicos.

Com quantidade de exemplares coletados de espécies novas na Fazenda, a ONF Brasil, em parceria com a UFMT, espera viabilizar nos próximos anos uma atualização do livro da Biodiversidade da Fazenda.

 

Grande e barulhento, o japu do Juruena surpreendeu os pesquisadores (Foto: Bruno Rennó)

Grande e barulhento, o japu do Juruena surpreendeu os pesquisadores (Foto: Bruno Rennó)

 

Durante os trabalhos de campo para o desenvolvimento do guia de aves da Fazenda São Nicolau no ano passado, os ornitólogos Vitor Piacentini, João Pinho, Victor Castro e Tiago Ferreira se depararam com a oportunidade única de observar e coletar material sobre uma população de japu-de-capacete atípica. O primeiro encontro com a ave misteriosa ocorreu em janeiro de 2012 na região do rio Juruena, Norte de Mato Grosso, pelos também ornitólogos Bruno Rennó e Vitor Torga. Bruno e Vitor estavam fazendo um inventário de aves no Arco do Desmatamento para auxiliar na conservação das espécies quando se surpreenderam com centenas de japu-de-capacete (Cacicus oseryi) em um ninhal em uma fazenda de Cotriguaçu. Foi neste momento que surgiu a dúvida se essa seria uma nova espécie ou subespécie de ave. Afinal, essa população estava a 1.100 km do seu local de distribuição conhecido: o extremo Oeste da Amazônia. A dupla coletou material para comparações com as coleções de japu-de-capacete, mas, dada a similaridade entre as populações, era preciso reunir mais dados para análise.

Há seis anos, o ninhal identificado estava em uma embaúba localizada na beira de um pequeno igarapé no meio da floresta no Vale do Juruena. Para os pesquisadores, não fazia sentido encontrar uma população reprodutiva do japu numa região tão longe de sua distribuição geográfica conhecida até então e ainda separada desta pelo rio Madeira, uma grande barreira natural para o acesso da espécie à região. Bruno e Vitor fotografaram os indivíduos, gravaram o seu repertório vocal e capturaram uma fêmea para comparação direta com o material do japu-de-capacete, disponível em coleções científicas no Brasil e no mundo. Nos dias que seguiram, também procuraram por novos ninhais, mas sem sucesso.

Os pesquisadores se lançaram à missão de identificar, a partir das coleções, se essa seria uma nova espécie. Essa tarefa é árdua, pois existe uma grande variação morfológica entre as espécies e é necessário ter acesso a dados que extrapolem um indivíduo para afirmar uma distinção clara. “A maioria das pessoas que não têm formação na área normalmente esquece que espécie é população e não indivíduo. E a natureza é pródiga em produzir diversidade e variação, mesmo dentro de uma única espécie. Diferenças ligadas à idade, sexo e local de ocorrência de um indivíduo podem tornar a delimitação de uma espécie algo bastante difícil, por vezes até subjetivo”, explicou Vitor Piacentini. Essa primeira análise revelou que a fêmea capturada era levemente mais escura que os indivíduos do Oeste amazônico. Foram examinados 40 exemplares do japu-de-capacete preservados no Museu Paraense Emílio Goeldi (Belém), American Museum of Natural History (Nova Iorque), Field Museum of Natural History (Chicago) e Louisiana State University Museum of Zoology (Baton Rouge).

Além da coloração da plumagem, as gravações revelaram sutis diferenças do canto dos japus encontrados em Mato Grosso. Contudo, as amostras genéticas obtidas em Cotriguaçu apresentaram problemas e não permitiram avaliar se havia de fato distinções entre essas populações. Os descobridores do japu no Mato Grosso sabiam que seria necessário retornar a campo para ampliar a amostra e, quando seus colegas do Laboratório de Ecologia de Aves da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) foram convidados a participar do guia de aves, acharam os parceiros que precisavam para tentar identificar o japu do Juruena.

A São Nicolau é vizinha da fazenda em que o ninhal havia sido encontrado pela primeira vez e, em novembro de 2017, os ornitólogos da UFMT se juntaram ao pesquisador Everton Miranda, já hospedado na Fazenda, onde estava desenvolvendo os levantamentos em campo para a elaboração de sua tese de doutorado sobre harpias. O grupo seguiu as coordenadas levantadas pelos pesquisadores em 2012 na esperança de encontrar novamente a população. No local, o silêncio imperava e o ninhal não existia mais (as embaúbas estavam quebradas por causa de fortes ventos). Houve ainda tentativas de tocar a voz da espécie em playback para atrair o japu. Sem nenhuma resposta, os pesquisadores retornaram decepcionados à São Nicolau.

O grupo sabia que teria uma semana de campo pela frente e ainda poderia achar a espécie furtiva. A surpresa aconteceu quando Vitor Piacentini escutou o canto do japu entre a algazarra das centenas de aves que se reuniam no entardecer em duas grandes touceiras de bambus exóticos, atrás do refeitório da Fazenda. “Cerca de um minuto depois de começar a observar com cuidado, uma ave cruzou o céu acima de mim e pousou numa haste de bambu. Uma ave grande, avermelhada, com a cara escura e que me olhava com olhos branco-azulados. O misterioso japu do Juruena fora reencontrado!”, relatou Vitor Piacentini. O reencontro permitiu, então, que pudessem ser retomados os trabalhos de comparação com os espécimes do Oeste da Amazônia.

 

O japu é reencontrado atrás do refeitório da Fazenda São Nicolau (Foto: Victor Castro)

O japu é reencontrado atrás do refeitório da Fazenda São Nicolau (Foto: Victor Castro)

 

As observações que se seguiram confirmaram as diferenças de plumagem para a população do Oeste amazônico. Mas, como as distinções não são muito chamativas, é possível que essa seja uma subespécie. O número de gravações do canto ainda é pequeno para apoiar um resultado mais categórico. O pesquisador Bret Whitney, da Universidade de Louisiana (EUA), recentemente conseguiu gravar chamados de alguns indivíduos em Colniza, também no Norte de Mato Grosso, confirmando que a espécie ocorre ao menos entre os rios Aripuanã e Juruena.

De posse de novas amostras de material genético, o próximo passo dos pesquisadores será uma análise molecular em busca de identificar a variação existente. Ainda é cedo para afirmar se o japu do Juruena é uma nova subespécie ou espécie. A única certeza é que uma nova ave grande, barulhenta e colorida encantou os pesquisadores no Arco do Desmatamento.